Algumas semanas atrás, Sarah Deutsch recebeu um telefonema típico. A advogada-associada da Verizon falou com um amigo advogado que lhe informou que alguém estava vendendo o endereço na Internet “Verizonwirelessstorm.com” na eBay por US$ 1 milhão. Para Deutsch e sua equipe de cinco advogados especializados em marcas registradas, isso iniciou mais um cansativo processo de tentar localizar o vendedor e recuperar o nome da web.
“Recebemos relatos de milhares de violações diárias, e é difícil priorizar os que vamos procurar”, ela diz.
A Verizon, uma grande operadora de telecomunicações dos EUA, possui um portfólio de 10 mil nomes de domínio, desde o evidente verizon.com até erros de grafia como verison.com e nomes como verizonsucks.com, que eles preferem manter fora das mãos de pessoas mal-intencionadas ou concorrentes. Isso é típico das grandes companhias. A Microsoft, por exemplo, possui mais de 24 mil nomes de domínio.
O trabalho de Deutsch vai ficar muito mais difícil. Na próxima primavera, a Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers, ou Icann) – o órgão que dirige as operações cotidianas da web – pretende permitir uma drástica expansão dos 268 domínios de “alto nível”, ou seja, qualquer coisa que venha depois do ponto. Atualmente estes vão dos genéricos “.com” ou “.org” até os específicos de países, como “.uk” ou “.br”. Mas o órgão baseado nos EUA agora pretende abrir as comportas e deixar qualquer um registrar um novo domínio de alto nível – desde que pague os US$ 186 mil (cerca de R$ 380 mil) de taxa de registro. A Icann estima que haverá cerca de 500 novos domínios, variando do específico de pessoas ou empresas (“.verizon”) até o genérico (“.livros”).
Essa abertura da Internet representa uma das maiores mudanças já vistas na estrutura da rede mundial de comunicação. Suas implicações são complexas e controversas – e se estenderão muito além das preocupações das empresas comerciais que veem a web como pouco mais que um shopping center virtual global.
Um representante do papa, por exemplo, escreveu para a Icann preocupado sobre como garantir que domínios religiosos delicados – como “.católico”, “.muçulmano” ou mesmo “.deus” – não caiam nas mãos erradas.
Enquanto isso, grupos de interesse público temem que as mudanças marquem uma redefinição mais geral das regras da Internet, que poderá fazer a livre expressão ser suplantada por interesses comerciais.
Essas preocupações, por sua vez, provocaram novas perguntas sobre a estrutura e a governança da Internet – uma questão que nunca esteve muito abaixo da superfície nos últimos anos. A Icann, uma corporação sem fins lucrativos que em última instância ainda responde ao Departamento (Ministério) do Comércio dos EUA, já enfrentou desafios sobre sua organização, notadamente uma tentativa europeia de colocá-la sob o controle da ONU.
A próxima expansão do sistema de nomes da Internet é uma parte central da tentativa da Icann de provar que realmente opera no interesse de um público global em rápido crescimento. O alfabeto romano, por exemplo, ainda domina o sistema de nomes da Internet, mas o maior público da rede hoje é o chinês. Os países árabes também se irritaram com a longa demora das tentativas da Icann de encontrar um sistema adequado para suas necessidades.
Se a Icann não conseguir agradar a esses grupos de interesse, as consequências poderão ser severas. Entender a coisa errada poderia levar a cismas sobre o sistema de nomes da Internet – na verdade levando a uma fragmentação que transformará a mídia online global em uma série de sistemas separados.
Com a próxima conclusão dos anos de trabalho para se criar um novo sistema de nomes, são as grandes corporações que vêm fazendo mais ruído.
Os custos e os riscos para qualquer grande empresa que faça negócios na Internet são consideráveis. Embora alguns nomes de domínio possam ser registrados por poucos dólares, se eles já forem propriedade de alguém poderá custar cerca de US$ 2 mil comprá-los de volta. Se a propriedade for discutida em um tribunal, os custos serão consideravelmente mais altos.
Mas os grandes anunciantes como a Verizon não podem ignorar os oportunistas – chamados de “cybersquatters”, ou “ciberinvasores” – que registram variações de sua marca na rede. Além de confundir as pessoas, sites falsos podem prejudicar a marca de uma companhia aos olhos de seus clientes. A Verizon estima que pelo menos 9 milhões de clientes poderiam ter sido atraídos para sites falsos, se ela não lutasse para recuperar o controle.
Em consequência, os donos de grandes marcas estão tentando garantir que a Icann tenha procedimentos que protegerão seus direitos quando o ataque começar – maneiras de fazer que os sites que infringirem marcas sejam fechados rapidamente, por exemplo.
No entanto, esses procedimentos estão se mostrando controversos com outras partes da comunidade da Internet, como grupos não-comerciais preocupados que possam sufocar a livre expressão online.
“No Irã os manifestantes puderam se comunicar com o mundo exterior por causa de servidores proxy [substitutos] que lhes permitiram continuar anônimos. Mas há grupos dentro da Icann trabalhando para evitar os servidores proxy anônimos porque eles podem interferir com marcas registradas”, diz Robin Gross, da IP Justice, uma organização internacional de liberdades civis.
Enquanto as tensões estão altas, poucos discutem que abrir o sistema de nomes é um passo necessário para criar uma base mais duradoura para a Internet, que beneficiará centenas de milhões de usuários.
Fãs da expansão dos domínios dizem que isso poderá facilitar a navegação. Procurar por “encanador.londres” poderá supostamente dar uma indicação mais clara do que é e onde fica uma empresa do que as muitas variações de “A1encanadores.com”.
“Gastamos muito tempo e dinheiro tentando conduzir as pessoas para os sites. Qualquer coisa que torne mais fácil encontrar as coisas na web é bom”, disse Tom Eslinger, da agência de publicidade Saatchi & Saatchi.
Outros acrescentam que o alto custo do novo sistema de nomes vai diminuir com o tempo. Nick Wood, da Com Laude, uma empresa de administração de nomes de domínio que trabalha para clientes multinacionais como Nestlé e AstraZeneca, diz que as taxas poderão ser inicialmente altas, mas “inevitavelmente” cairão.
“Quando os domínios .com começaram a ser vendidos, em 1994, custavam US$ 200. Hoje podem ser registrados por US$ 6. Isso acontecerá para os domínios de alto nível. Quando um registro cair para US$ 18 mil ou US$ 9 mil, muitas companhias vão se candidatar”, ele diz, acrescentando que já sabe de 54 companhias do Reino Unido e do norte da Europa que estão interessadas em registrar seu próprio nome de domínio.
Mas os esforços de última hora de grandes corporações para garantir que o novo sistema de nomes proteja seus interesses provocaram uma reação mais ampla, expondo as profundas tensões dentro da Icann.
Uma recente reunião da Icann em Sydney (Austrália) chegou a um conflito frontal sobre a questão.
“Foi um ambiente muito hostil – mesmo para uma reunião da Icann, que geralmente é um ambiente hostil para proprietários e representantes [de propriedade intelectual]. Havia pessoas gritando para nós, dizendo que éramos tiranos, e blogs nos comparando com Ahmadinejad”, disse Kristina Rosette, da firma de advocacia Covington & Burling, que estava envolvida em esboçar recomendações para a Icann sobre proteção de marcas quando os novos nomes de domínios forem lançados.
Hoje muito depende de Rod Beckstrom, o novo executivo-chefe da Icann. Um ex-czar da ciber-segurança no Departamento de Segurança Interna dos EUA, Beckstrom se esforça para manter uma posição neutra em seus primeiros dias no cargo – mas seus comentários pouco serviram para acalmar os temores das corporações.
“Você pode olhar para os donos de domínios de muitas maneiras. Alguns os veem como ‘cibersquatters’, alguns como empreendedores. Eu acho que existe um rico e saudável debate a ser feito”, ele diz, acrescentando: “Não há solução em que todo mundo ganhe o que quer”.
Os donos de marcas registradas temem que esses comentários mostrem que Beckstrom não está escutando suas preocupações.
“Existe definitivamente um potencial para um impasse entre a Icann e os donos de marcas”, diz Rosette, que descreve as declarações de Beckstrom como “desconcertantes”. Se a Icann não demonstrar que realmente pretende evitar a violação de marcas registradas, os dois lados poderão acabar no tribunal, ela adverte.
“Não é segredo que há donos de marcas registradas que adorariam processar a Icann por infração.”
Grupos de interesse público, por outro lado, também advertem que uma divisão prejudicial pode estar à frente. “Se usuários não-comerciais sentirem que nossas vozes não estão sendo ouvidas nas reuniões, não conseguiremos que as pessoas participem da Icann.”
Afinal, o perigo para a Icann – e para os internautas de todo o mundo – é que essas tensões possam destruir o delicado consenso em que se baseia o diretório global da internet. Se a Icann perder a confiança de países afiliados ao seu sistema, poderá levar ao surgimento de sistemas de nomes rivais, rompendo o mundo online em uma série de redes fragmentadas.
Financial Times
Maija Palmer e Richard Waters
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
20/07/09